É talvez o maior defeito da humanidade: dar uma grande importância a coisas supérfluas e esquecer o essencial. Esquecer a verdadeira razão da sua existência – a solidariedade e o amor ao próximo. É um defeito que, às vezes, parece estar entranhado no nosso sangue. No nosso ADN. Gostamos de valorizar muito o secundário. O fútil. Somos facilmente guiados pelos piores sentimentos: o ódio, a inveja ou o egoísmo.
Este pequeno preâmbulo, que até pode parecer exagerado e com algum falso moralismo da minha parte, vem a propósito de uma reportagem que vi, há dias, na TCV. Estou a falar do “Repórter do Dia” (aproveito, desde já, para dar os parabéns ao jornalista), uma peça jornalística que conta a história de um adolescente de treze anos que se sentiu obrigado a virar chefe de família. Uma verdadeira história de vida.
Nilton Carlos Lima Gomes, de seu nome, ou simplesmente Nilton, é um menino que foi abandonado, juntamente com os outros irmãos, pelos pais durante quase um ano (a mãe entretanto já voltou da Boavista e o pai foi para S.Vicente e nunca mais deu notícia). Deixado ao Deus-dará, só lhe restou esta alternativa: cuidar sozinho dos irmãos.
No entanto, isto não lhe impediu de conseguir ser um dos melhores alunos da sua escola, tendo mesmo sido distinguido com o “quadro de honra”.
Não tinha dinheiro para nada. Inclusive teve de pedir emprestado o uniforme a um amigo para poder assistir às aulas. Passou fome. Sem opção, continuou a viver numa casa pouco digna (sem água e sem casa de banho), num dos bairros mais problemáticos dos arredores da capital (Fonton).
Mesmo assim, e graças a alguns apoios (vizinhos, escola e algumas instituições), mas sobretudo a sua grande vontade e determinação em continuar a fazer o que ele mais gosta – estudar –, nem a delinquência infantil ou outros fenómenos conseguiram levar o menino Nilton a enveredar por maus caminhos.
Perante todas estas vicissitudes da vida, era expectável ver um menino rancoroso, aborrecido ou triste. Não! Durante toda a entrevista, e nem por um segundo sequer, o nosso pequeno herói Nilton deixou transparecer qualquer mágoa. Aliás, foi o contrário: viu-se, pela cara e pelo olhar, um menino alegre e amoroso. Outro aspecto: mostrou um à-vontade perante as câmaras e os microfones, claramente sinal de uma grande auto-confiança.
Uma história deveras comovente e que nos interpela a todos para a nossa existência. Uma verdadeira lição de vida, em todos os aspectos: de solidariedade, de amor, de altruísmo ou de perseverança. Uma história que merece ser contada e divulgada.
Entretanto, parece que a história do menino Nilton já começa a ter eco. A Câmara Municipal da Praia, por exemplo, já veio a público disponibilizar ajuda à família a ter uma casa própria e digna. Um acto louvável pois, nestas ocasiões, toda a ajuda é bem-vinda.
Todavia, o Nilton (assim como muitos outros “Niltons” que existem por este país fora) merece muito mais do que um simples apoio ou esmola: precisa de carinho, afecto, amor, amizade e, sobretudo, oportunidade para fazer o que qualquer menino mais gosta de fazer: brincar.
E esta obrigação assiste a todos nós – estado, sociedade civil, escolas, igrejas, pais, familiares ou amigos. Por isso, aproveito para deixar aqui alguns pequenos reparos.
Primeiro: ao ICCA – Instituto Cabo-verdiano da Criança e do Adolescente. Não obstante reconhecer o trabalho que esta instituição tem feito, parece-me que, algumas vezes, tem actuado de uma forma mais reactiva, na base das denúncias. Não pode ser só assim. Tem que ser mais pró-activa, antecipando alguns destes problemas. Segundo: os pais têm de (ou devem ser obrigados a) assumir as suas responsabilidades. Terceiro: a impunidade dos violadores e dos abusadores tem que acabar. Quarto: os tribunais, as polícias (PJ e PN) e os hospitais (nos casos de abuso sexual e maus-tratos) têm que colaborar mais de perto. E, finalmente, quinto: às igrejas. Todas as confissões religiosas devem ter esta preocupação pois afinal Jesus Cristo disse “ama o teu próximo como a ti mesmo”. Não podem só pregar. Também é preciso mais acção. Por exemplo, hoje já não se vê e nem se ouve falar do seminário, um lugar que, antigamente, acolhia muitos meninos.
Se juntarmos todos juntos, não restarão dúvidas: fenómenos como “crianças de rua”, o abandono, os maus-tratos, o incesto, o abuso sexual, o trabalho infantil ou o não registo de nascimento de crianças serão definitivamente erradicados do nosso país.
No entanto, para o Nilton, a vida continua. Ainda só ganhou algumas batalhas. Vai ter ainda muitas mais pela frente. Prometeu, um dia, aos seus irmãos que nunca os abandonaria. Cumpriu a sua promessa. Na entrevista, falou numa outra: a que fizera ao avô, entretanto já falecido – disse-lhe que, um dia, seria Doutor.
Não sei se (mas desejo muito), um dia, o Nilton será médico pois sabemos todos que, amiúde, os sonhos de criança mudam na idade adulta. Mas, se assim não for, pode ser que dali saia um engenheiro, um professor, um polícia ou um veterinário.
Ou seja, parece que o futuro profissional deste menino vai ser difícil de se adivinhar. Nisto, porém, já não tenho dúvidas: o menino Nilton vai ser um grande homem.
Até breve!
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